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Como o TikTok acabou com o maior trunfo das redes sociais comerciais

 
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Tecnologia cria hábitos e hábitos criam memórias. Um dos hábitos alimentados por tecnologia que a juventude brasileira de classe média na década de 1990 tinha era, na sexta à noite, ir até uma videolocadora. Na época, a mídia ainda era física e, consequentemente, limitada — hoje, a mídia é um apanhado de dados gravado num disco rígido (na sua máquina ou num servidor na nuvem), o que a torna ilimitada pela reprodutibilidade. Quando o videocassete se tornou barato no fim da década de 1970, explodiu o fenômeno do homevideo e os apocalípticos de ocasião juraram que o reprodutor doméstico mataria os cinemas. Na real, os cinemas ficaram bem e os estúdios encontraram uma nova forma de recuperar o investimento na produção dos filmes. Mas como comprar mídia física original era caro, surgiu um modelo do aluguel. As locadoras de vídeo dominaram a maneira como consumíamos multimídia — não apenas filmes, mas games também — na década de 1990.

Se você ainda não tem ressacas que duram dias, meus parabéns, isso é tão teoria para você como o meteoro que dizimou os dinossauros. Se você lembra, parabéns também: o dinossauro é você. Como qualquer mercado minimamente organizado, o de locadoras também tinha faixas (para aproveitar essa onda recente da internet de colocar em prateleiras toda e qualquer coisa da humanidade). Existiam as locadoras de bairros, quase sempre melhores, e as multinacionais, representadas pela Blockbuster. Quase todas faziam pacotes especiais nas sextas à noite para que a horda de jovens e velhos da década de 90 assistissem a vários filmes no fim de semana e só devolvessem tudo na segunda. Moscou na noite de sexta? Chegou na locadora e não tem mais nada de interessante? Talvez na Blockbuster tenha sobrado uma cópia de comédia do (diretoria) Jim Carrey ou aquele filme que já não estava bombando.

A explicação toda não é saudosismo. A vida com mídia em bits, não em átomos, é inegavelmente melhor — com a exceção do vinil, mas essa é discussão para outro dia. Acontece que nesse modelo de consumo multimídia havia uma figura fundamental que nos ajudava a navegar na grande (mas ainda não infinita) oferta de possibilidades: o cara da locadora. A figura era quase sempre alguém jovem que consumia filmes de forma compulsiva e tinha sempre na manga uma sugestão de filme, artista ou movimento sobre o qual você nunca tinha ouvido falar. Alguns eram pedantes? Claro, é muito difícil encontrar um fã (ou hater) do Godard que não seja só um pouquinho pedante. Às vezes as sugestões não eram exatamente uma maravilha, mas eu não lembro de acatar uma sugestão de um funcionário de locadora e não ter, pelo menos, ficado positivamente surpreso.

Interior de uma antiga locadora de vídeo com chão acarpetado.
Foto: Jon Konrath/Creative Commons.

Trabalhar em locadora — e consumir tanto conteúdo sobre filmes — foi uma escola de cinema para alguns grandes diretores, a começar por Quentin Tarantino, Kevin Smith e Steven Soderbergh. O exemplo mais interessante do fenômeno é Tarantino escrevendo o roteiro de Cães de aluguel enquanto trabalhava em uma locadora em Manhattan Beach, na Califórnia.

Um dos amigos com quem o Tarantino planejava filmar o roteiro deu uma cópia para seu professor de atuação. A esposa do tal professor repassou o roteiro ao Harvey Keitel, que gostou tanto que não apenas se escalou para o papel de Mr. White como ajudou a levantar capital. Esse papel da videolocadora como uma espécie de escola de cinema na década de 1990 está muito bem documentado no livro I lost it at the video store: A filmmakers’ oral history of a vanished era (sem tradução para o português), do jornalista Tom Roston. Abre aspas para a reportagem da New Yorker sobre o livro:

As locadoras foram plataforma de lançamento de verdadeiros outsiders e seus exemplos forneceram inspiração para que os cineastas Joe Swanberg e Alex Ross Perry as vissem como playgrounds cinemáticos. Quando esses cineastas jovens foram para as escolas de cinema, locadoras eram um tipo de contra-programação, uma afirmação de valores e das diferentes personalidades daqueles descobertos em seus estudos. Eles exaltavam valores anti-acadêmicos de desordem, espontaneidade e entusiasmo.

As recomendações surfavam nessa exaltação do próprio interesse, da própria personalidade cinematográfica montada pelo consumo compulsivo de conteúdos semelhantes a interesses próprios — Tarantino sempre foi apaixonado por horror e “gore”, algo que fica evidente na sua filmografia. Encontrar um(a) atendente de locadora que compartilhasse contigo alguns desses interesses seria o Eldorado: ter à disposição não apenas o conhecimento enciclopédico, mas também um construído a partir de interesses compartilhados. Era a certeza de voltar para casa no fim de semana com novos filmes que certamente você gostaria. Era também um processo aleatório, em que a sorte e a aleatoriedade exerciam um relevante papel. E se aquela atendente que também curtia filmes de samurai dos anos 1960 trabalhasse na locadora do outro lado da cidade, enquanto a do seu bairro tinha uma fixação pela Nouvelle Vague?

Como resolver isso em escala? Como garantir que as melhores recomendações chegariam aos ouvidos de quem melhor as aproveitaram? No mundo físico das videolocadoras, a pergunta era apenas retórica, mas a codificação de produtos e serviços em bancos de dados a tornou um guia, algo que molda um objetivo. Recomendação online é uma das áreas mais antigas da análise de dados. Muito antes da expressão “ciência de dados” se popularizar na sua timeline do LinkedIn mais rápido que dois coelhinhos no cio sem nada para fazer, já existiam centenas de especialistas que trabalhavam grandes bancos de dados para entender a melhor forma de indicar algo desconhecido de que você pudesse gostar — principalmente se isso significasse uma venda a mais. Na última década, a popularização de ferramentas de armazenamento e análise e a sofisticação de bibliotecas de aprendizagem de máquina se traduziram em sistemas de recomendação replicados não apenas em filmes ou produtos no e-commerce.

No nono episódio da quarta temporada do Tecnocracia, a gente vai falar das consequências dessa explosão nos sistema de recomendação e como o TikTok, com uma competência que pouquíssimas empresas do setor têm em algoritmos de recomendação, está forçando o mercado a mudar um paradigma antigo. É o nosso episódio anual sobre o TikTok, o aplicativo que todo usuário com mais de 30 anos encara da mesma forma que um filme Transformers do Michael Bay: a gente olha para a tela, sabe que tem alguma coisa acontecendo, mas é tudo tão rápido que ninguém tem a menor ideia de que porra é aquilo. Ao fazer muito mais com o mesmo, o TikTok agarrou o mercado pelos chifres e agora está todo mundo sendo forçado a reagir, ainda que isso signifique comprar briga com a razão do seu sucesso: sua base.

Toda quinzena (às vezes mais), o Tecnocracia junta cinema, influenciadores, teoria literária e fofocas do Instagram para mostrar como ainda tem muita coisa a construir nessa coisa chamada internet. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de crowdfunding do Manual do Usuário. A partir de R$ 16 por mês, você ganha um assento no grupo do Telegram e participa do episódio mensal ao vivo do podcast, o Balcão. E ainda ganha adesivos.

Existe uma história em ciência de dados que já foi contada tantas vezes que, tal qual a sabedoria popular, virou quase folclore. É a seguinte: na década de 1990, a analista responsável por um varejista nos Estados Unidos estava analisando dados de compras de produtos para bebês. Quem já teve filho sabe: do lado do consumidor, é tudo caro demais, o que significa que no lado do fornecedor a margem é excelente. A ideia original era entender quais produtos de bebê poderiam ser vendidos juntos para tentar “colar” nos campeões de vendas outros produtos que não saiam tanto — ou, como diria a Luciana Gimenez, fazer um “cross selling”.

Algumas queries de SQL e horas de análise mais tarde, a tal analista descobriu que o produto com maior correlação com fraldas não era Nan ou chupetas, mas cerveja. Cerveja não é exatamente o que você pensa quando cogita itens parecidos com fraldas, mas os dados batiam. Em uma palestra sobre Strat e Hadoop em 2015 (ou seja, quando a explosão recente de ciência de dados estava começando), o analista de dados Mark Madsen afirmou que traçou a história até sua origem: a analista seria Karen Heath, então empregada pela Teradata para analisar dados de um varejista norte-americano em 1992. Madsen é atualmente um fellow da mesma Teradata, empresa fundada em 1979 para analisar dados. Pode ter sido Heath, pode não ter sido.

O ponto é que a história quase apócrifa ilustra que sistemas de recomendação no varejo não são novos. Tanto que, quando varejistas online começaram a se organizar, o enorme volume de dados encontrou na recomendação uma das suas primeiras aplicações. Algumas das primeiras abordagens positivas sobre a Amazon, fora o receber sem sair de casa, era a capacidade de indicar produtos que o consumidor também se interessaria sem, no entanto, ter que procurá-los ativamente.

O algoritmo era tão bom (continua até hoje) porque usar uma abordagem de filtragem colaborativa item por item, que produz resultados melhores que outras abordagens tradicionais, como clusterização e métodos baseados em busca, e também escalava em bancos de dados gigantescos. Os três responsáveis pelo algoritmo escreveram um artigo acadêmico, publicado na edição de janeiro e fevereiro de 2003 da revista técnica IEEE Internet Computing, explicando em linhas gerais a abordagem prática.

Quase 20 anos depois, o artigo é uma das pedras fundamentais de recomendação online — lá se vão 7,8 mil citações acadêmicas e centenas de patentes. A própria Amazon não se constrange em detalhar como o algoritmo evoluiu nas duas últimas décadas para se tornar mais poderoso com machine learning e estar disponível dentro da AWS. Outro exemplo de como a Amazon é excelente em transformar custos fixos em centros de receita, mas isso é papo para outra hora.

Algoritmos de recomendação não eram usados apenas para o varejo digital. Se dá para recomendar produtos físicos, por que não multimídia? Outro exemplo clássico de recomendação online é a Netflix. Lá por meados dos anos 2000, quando a Netflix começava a ganhar tração no mercado, o sistema já era muito bom para indicar filmes e séries semelhantes ao seu histórico, mas ainda havia margem para melhorar. Em 2006, a empresa anunciou que pagaria US$ 1 milhão a quem conseguisse aperfeiçoar o algoritmo. Três anos depois, um grupo composto por pesquisadores do AT&T Labs levou a grana para casa com um ajuste que melhoraria as recomendações em 10%, algo bem relevante para sistemas de aprendizado de máquina (machine learning)1. É aí que a dúvida do começo parece resolvida. As indicações dos atendentes de locadora estão digitalizadas e melhorando. Parecia inevitável que, em algum momento, a experiência se tornaria melhor. E se tornou. Mas não pelas mãos de Netflix e Amazon.

Entra em cena o TikTok e o porquê de estarmos falando de sistemas de recomendação há vários minutos. Você, personagem do Balzac, pode virar os olhos, mas o TikTok é hoje uma das históricas mais interessantes de tecnologia por dois motivos: um técnico, outro geopolítico. O geopolítico nós já aprofundamos no Tecnocracia #51. Hoje a gente vai falar do lado técnico.

Antes, um passo para trás para entender como funciona machine learning. Basicamente, um algoritmo do tipo é capaz de analisar um volume enorme de dados e encontrar padrões que você, na sua atenção e capacidade de processamento humanas, não conseguiria. Esses algoritmos são alimentados com dados que exploram “features” do campo que você pretende analisar. Criar features é uma arte por si só em ciência de dados. “Guilherme, que porra é features?” Features é todo e qualquer dado que ajude a classificar o dado (ou seja, um dado sobre dado, um metadado). Para fazer análises esportivas, você pode levar em consideração, por exemplo, a quantidade de passes que um atleta dá por jogo, a distância que ele percorre, os cartões que recebe, os gols que marca, as reclamações que faz com o juiz, se gesticula ou não com a torcida, se recebe ou faz faltas, se tirou a camisa ao fazer gol… A lista pode ser enorme. De novo: pensar em features é uma arte. Todos esses dados ajudam a descrever aquela informação.

Ninguém é tão bom para criar recomendações precisas usando pouca informação quanto o TikTok. Fora o blablablá oficial da ByteDance, veículos já tentaram investigar o funcionamento do algoritmo do TikTok.

Em 2021, repórteres do jornal Wall Street Journal criaram mais de cem contas no TikTok para tentar entender o algoritmo. No começo, o aplicativo vai apresentando vídeos com muitas visualizações. Conforme o usuário assiste a esses vídeos e interage com eles ou os ignora, o aplicativo vai afinando os gostos e enchendo a timeline com mais conteúdo do seu gosto. Nos testes do WSJ, o algoritmo foi capaz de criar um perfil assombrosamente preciso dos interesses em 40 minutos, incluindo propensão à depressão. Com o perfil lapidado constantemente, o TikTok vai conduzindo o usuário aos “rabbit holes”, referência a Alice no país das maravilhas: aquelas câmaras de eco onde só toca o que te move (seja esse sentimento medo, conforto ou raiva). Isso inclui rabbit holes que incentivam suicídio, automutilação e bulimia.

Rede representando conexões de vídeos no TikTok, com algumas miniaturas de vídeos de danças.
Imagem: Wall Street Journal/Reprodução.

As descobertas do teste empírico do WSJ coincidem com documento obtido por outro jornal, o New York Times, no fim de 2021. Chamado de “TikTok Algo 101”, o documento interno da ByteDance explica que os dois grandes objetivos do aplicativo são retenção (se o usuário abre o aplicativo de novo) e tempo gasto (para você ficar o maior tempo possível lá dentro). “Este sistema significa que o tempo gasto é chave. O algoritmo tenta viciar as pessoas em vez de dá-las o que elas querem de verdade”, explica o pesquisador Guillaume Chaslot, que após trabalhar no algoritmo de recomendação do YouTube saiu do Google e fundou uma organização chamada Algo Transparency para defender maior transparência sobre os algoritmos que regem nossas vidas digitais. Meu xará Guillaume leu o documento obtido pelo New York Times.

Como isso funciona na prática?

Quando você entra no TikTok, antes de você, trintão ou trintona, convulsionar pela explosão de imagens, flashes e dancinhas2, o aplicativo não enche seu saco pedindo para adicionar amigos, familiares e afins. Ele já te mostra vídeos logo de cara e o algoritmo, baseado em como você reage a esses vídeos, começa a calibrar os assuntos que ele suspeita sejam do seu interesse. Quanto mais você assiste, mais vídeos daqueles assuntos na sua gigantesca biblioteca são selecionados e, com o seu feedback (direto ou indireto; até o tempo vendo o vídeo é levado em conta), entende melhor o que naquele vídeo de homens de sunga brincando com filhotes de husky à beira mar chamou sua atenção: os homens de sunga, os filhotes de animais, os huskies, a praia, a paleta de cores, o filtro usado, a música eletrônica nervosa, os cortes rápidos… Cria-se um círculo vicioso — você vê e reage, o algoritmo calibra, seleciona e envia novos vídos, você vê os novos vídeos e por aí vai. Não é necessário adicionar seus amigos para aproveitar o TikTok. “O formato de vídeos curtos agarra sua atenção em um nível mais primitivo, apoiando-se em novidades visuais ou uma esperta mistura entre música e ação ou expressão emocional direta, para gerar seu apelo”, como explica o professor da Universidade de Georgetown e autor do livro Trabalho focado, Cal Newport, na revista New Yorker.

Estruturalmente, o que o TikTok faz não é nada diferente, por exemplo, do que o YouTube faz há mais de uma década3. A diferença é que o sistema de recomendação criado pela ByteDance para o TikTok funciona absurdamente bem. Tão bem, mas tão bem que está quebrando um dos principais paradigmas da internet.

Desde a década de 1970, assimilamos a computação pessoal nas nossas vidas usando referências que já temos. A área de trabalho dos sistemas operacionais chama “desktop” por replicar o espaço de trabalho sobre a escrivaninha que a humanidade tem há séculos. As semelhanças eram tamanhas que, durante muito tempo, aplicativos do Mac e Windows replicavam desnecessariamente a textura de elementos presentes no desktop físico, como o couro que protegia as bordas da mesa ou as pastas amarelas (mais comuns nos Estados Unidos) para representar diretórios, algo chamado de esqueumorfismo no design.

Quando as redes sociais começaram a fazer sucesso, não foi diferente — a socialização digital só começou a decolar quando migramos para o online a rede de amigos, familiares e conhecidos que fomos arregimentando ao longo da vida no mundo real. Essa rede e todas suas conexões tem nome: grafo social. Pense em todas as pessoas que você já conheceu o suficiente para se lembrar de nomes, rostos e/ou características pessoais. Tente imaginá-la como uma teia em que os pontos são pessoas que se conectam por linhas quando há algum laço, com você no centro, ligada a todas elas. Esse é o seu grafo social.

Foi baseado no grafo social que você entendeu o Orkut e o Facebook. No sentido contrário, você só passou a falar a expressão “grafo social”, nascida nos anos 1960, por causa do Facebook e do Orkut. Recuperando as amizades dos tempos do colégio ou aqueles seus tios velhos do interior. O grafo social é importante já que comunidades digitais são como bares: você pode até preferir um mais afastado que tem um drink melhor ou uma coxinha mais gostosa, mas se todos seus amigos estão naquele bar meia boca é provavelmente para lá que você vai. A partir do momento em que o Facebook atraiu um número suficiente de pessoas para replicar digitalmente essa rede de contatos formada na vida real, a guerra das redes sociais generalistas terminou. Uma das leis básicas da internet é a de Metcalfe: o valor de uma rede é proporcional ao quadrado dos usuários conectados nessa rede. É por isso que migrar do Facebook é difícil — lançar um concorrente é moleza, mas como carregar aquela multidão com você? A curva de aprendizado trabalha contra. É mais ou menos a razão pela qual é tão difícil convencer seus pais a trocar o WhatsApp pelo Signal. É baseado nessa rede de contatos e no conteúdo que ela produz voluntariamente que a rede social seleciona o que te mostrar. Com o grafo social de quase metade da humanidade, o Facebook parecia imbatível.

É aí que entra o TikTok. O sistema de recomendação criado pelo TikTok é tão bom, mas tão bom que, sem te conhecer há anos, te serve conteúdos mais afinados ao seu gosto do que aqueles filtrados pelos seus amigos e parentes. Esse grau de automação também resolve outros problemas do modelo antigo: o conteúdo que vem do seu grafo social é finito — seus X amigos produzem um número Y de posts. Uma hora, esse volume se esgota.

Não demorou muito para que as plataformas vissem as vantagens e passassem a integrar a recomendação por machine learning e a pelo grafo social. Os resultados do TikTok falam por si só. De novo Newport na New Yorker:

Estima-se que o TikTok tenha um bilhão de usuários ativos mensais, um número atingido em um espaço de tempo muito curto, e de acordo com algumas notícias o app tem tempo médio de uso de 10,85 minutos por sessão. Se verdade, isso seria muito mais alto que qualquer outro app de rede social.

Confrontados com o inegável sucesso, Twitter, Facebook e Instagram estão há um bom tempo tentando replicar o modelo. O problema é que as três redes foram construídas a partir do grafo social. No final de julho, o balanço entre o que vem do grafo e o que vem do algoritmo pendeu demais para um lado e deixou uns perfis bem grandes incomodados.

Print do story que Kylie Jenner postou pedindo para o Instagram voltar a ser o que era.Entra no certame Kimberly Noel, uma influenciadora bastante popular que você conhece pelo nome Kim Kardashian4. No stories, Kim e sua irmã Kylie Jenner compartilharam um post que pedia que o Instagram voltasse a ser Instagram. Traduzindo: parasse de meter tanto reels e conteúdos sugeridos no seu feed e voltasse a mostrar posts dos amigos de forma cronológica.

A gente já falou isso no Tecnocracia #40: Kim Kardashian (e suas irmãs moldadas à sua imagem e semelhança) é o rosto do Instagram. Daqui a décadas, quando arqueólogo da mídia detalharem esse período esquisito em que vivemos, lá estará o rosto e as curvas de Kim como o parâmetro a partir do qual milhões de pessoas no mundo se inspiram para se exibir no Instagram. Foi Kim a pioneira do chamado “Instagram look”: as poses, o duck-face, as roupas, os penteados… Kim Kardashian está para os anos 2010 como a Pete Wentz está para os anos 2000 e a Pakalolo está para os anos 1990. Quando a “poster child” (beijos, Lu) do teu serviço reclama publicamente é que algo não vai bem de verdade. Kim e Kylie expressaram uma frustração que milhões de usuários do Instagram sentem há um tempo: o Facebook tem colocado tanto penduricalho que o aplicativo virou uma feira livre. Há um tempo que o Facebook elegeu o Instagram o seu matador de rivais: sempre que detecta uma possível ameaça ao seu reinado, a turma de Zuckerberg replica o modelo de sucesso dentro do Instagram. Alguns deram muito certo — vide os stories copiados do Snapchat. Mas a transmutação do Instagram em algo cada vez mais parecido ao TikTok, com um excesso de vídeos e indicações algorítmicas, não desceu tão bem, a ponto de incomodar a rainha do aplicativo.

Parece claro que o Instagram está preso entre duas coisas: de um lado, você tem o futuro do serviço. É inevitável: como o TikTok já mostrou, o futuro dessas redes sociais passa por vídeo e por um aumento nas recomendações por algoritmos. Vídeos dão mais pontos de dados que fotos e textos e, por isso, há uma quantidade muito maior de informação a se analisar para recomendar mais conteúdo (e a roda recomeça).

A outra amarra que prende o Instagram é sua própria base. Existe uma relação simbiótica entre criadores de conteúdo e as plataformas. Aqueles só conseguem dinheiro e projeção por estas, estas só conseguem se manter atraentes e lucrativas pela ação daqueles. Existe um equilíbrio delicado em assuntos como a moderação das próprias regras sem alienar e/ou deixar os criadores incomodados a ponto de partirem5. Nessa relação delicada, quem tem uma grande vantagem é a plataforma. A gente já vive há anos suficientes dentro da chamada economia criativa para saber que são pouquíssimos aqueles que sustentam um nível de fama e relevância por tanto tempo. A regra é a renovação. Eu aposto uma galinhada com coentro e apimentada6 que você consegue citar de bate-pronto três ou quatro criadores que você admirava e que perderam relevância, sumiram nos últimos anos — porque o algoritmo mudou, porque a pessoa se cansou, porque o tema saiu de moda… As razões são muitas. Para cada Kardashian e Whindersson que se mantiveram, há centenas de Te Dou Um Dado, Thomas Sanders, o Charges.com.br… A lista é enorme.

É mais isso que motivou a reclamação pública das Kardashian. Pessoalmente, eu não acho que Kim e suas irmãs estejam preocupadas com o Instagram ser um aplicativo para ver fotos de amigos. Dá um pulo na conta dela no Instagram: em setembro de 2022, ela segue 206 pessoas e é seguida por 330 milhões. Se o Instagram fosse só para amigos, Kim não seria a rainha do aplicativo. A reclamação não é saudosismo de ver os filhos, os almoços ou os lattes dos seus amigos, é 100% auto-proteção, defensividade baseada numa dose de hipocrisia. Sentada no trono, Kim reclama contra a plataforma que a alçou à posição pelo medo das mudanças ajudarem na ascensão de outros influenciadores que não ela. A médio prazo, esse modelo de encher o feed de recomendações automatizadas tira espaço das contas que você já está seguindo. É, logo, um risco para o grupo liderado pelas Kardashian. O medo é que todos se juntem aos nomes citados há pouco na reciclagem dos criadores. Vai demorar, lógico, mas pode acontecer.

Frente à gritaria, o responsável pelo Instagram dentro da Meta, Adam Mosseri, gravou um vídeo fazendo uma mea-culpa. Ele admite que a plataforma está testando novas abordagens para recomendação e que entende o incômodo dos usuários acostumados com o modelo tradicional. O que chamou a atenção, porém, foi o que Mosseri não falou.

Pintura com uma espécie de rei no centro, olhando para uma inscrição iluminada na parede atrás, enquanto rodeado de outras pessoas.
Festa de Belshazzar.. Pintura de Rembrandt.

O novo menu para conteúdos dos amigos é a versão digital da Festa de Belsazar, capítulo 5 no Livro de Daniel do Antigo Testamento: a escrita do futuro está claramente na parede. O Instagram não vai parar e o próprio Mosseri fala isso no vídeo. A Meta também não. Ninguém vai. Abre aspas para Jeff Horwitz, repórter do jornal Wall Street Journal:

A Meta quer te entregar mais conteúdos de amigos. Mas pesquisas mostraram que: 1) seus amigos não estão postando o suficiente para encher o inventário; e 2) seus amigos são menos interessantes que TikToks ou memes. Ou seja: ou você assiste a vídeos curtos ou faz amigos mais interessantes.

Não é só isso. As razões para a mudança não são apenas para facilitar a vida da Big Tech. Há também uma questão comportamental inegável: a maneira como interagimos e criamos laços online mudou muito desde 2011, 2012, quando o Instagram começou a explodir em popularidade. “É tentador pensar que se o Instagram simplesmente revertesse para uma interface anterior ou recuperasse o feed cronológico nós nos reaproximaríamos das pessoas que gostamos. Mas nós não criamos ou aumentamos conexões pessoais mais pela publicação ou comentários em fotos bastante pessoais e públicas organizadas em uma grade. Hoje, intimidade digital é trabalhada por funções como DMs, chats em grupo ou posts efêmeros para os Melhores Amigos”, escreve a jornalista Taylor Lorenz, do Washington Post. Ela está certa: fora a postura defensiva das Kardashian, a discussão está mergulhada em um saudosismo que não cabe mais. Redes sociais mudam também porque a forma de interagir da da sociedade em comunidades digitais muda.

O modelo de redes sociais no sentido mais literal (formado por conteúdos criados a partir de interações sociais) parece fadado a desaparecer por um modelo de redes de recomendação (formado a partir de interesses semelhantes). Tanto que o próprio TikTok não se apresenta como uma rede social, mas como um aplicativo de entretenimento. É outro formato que a Big Tech “old school” vai dominar? 7 Em outras palavras: há espaço para otimismo? Cedo para dizer ainda, mas as dificuldades em replicar o TikTok sugerem que a batalha não vai ser moleza como copiar o Snapchat. Newport é flagrantemente otimista: “No final, o maior legado do TikTok talvez seja menos sobre o seu sucesso mundial de agora, algo que deverá passar, e mais sobre como, ao forçar redes sociais gigantescas como Facebook a perseguir um novo modelo, ele acabou liberando a internet social.” É inegavelmente um novo movimento, daqueles que não vimos na última década.

A Meta não tem bala de prata contra o TikTok: já tentou copiar e não colou, vem mudando a estruturas de recomendação com resultados no máximo medianos e enfrentou a fúria da própria base, e nem cogita comprar o TikTok já que 1) o TikTok é a jóia da internet chinesa; 2) o governo dos EUA e a opinião pública estão com a companhia no microscópio; e 3) o TikTok está grande demais para ser digerido. Resta tentar navegar nas antigas águas, algo que a Meta tem demonstrado fazer com notória incompetência. A migração para o modelo de recomendação algorítmica seria um desafio menor se a empresa de Mark Zuckerberg conseguisse criar um produto que não fosse horroroso ao usuário final. Qualquer um que tenha usado o Instagram recentemente viu como ele virou um Frankenstein: foto, vídeo, compra, Reels, uma cacofonia horrível… Tudo é ruim, mas talvez nada seja pior que a aba Explorar e suas sugestões sem qualquer precisão, inclusive de contas que você já bloqueou.

Para voltar à nossa metáfora inicial, o movimento recente de recomendações algorítmicas é como se os atendentes das locadoras fossem digitalizados para não precisar encontrar aquele que tem o gosto parecido ao seu. Na teoria, qualquer um te daria indicações 100% lapidadas para seu gosto. Mas a execução até agora pela Big Tech norte-americana em sua tentativa de reagir ao TikTok é você entrar na locadora e, cercado por milhares de excelentes filmes dos mais variados gêneros, o tal atendente só é capaz de te trazer cópias gastas de Cinderela baiana e vez ou outra um manual de terrorismo neonazista e dizer que é isso o que você quer ver.

Foto do topo: Solen Feyissa/Unsplash.

  1. Em ML, o treino de modelos parte de um modelo já pronto e compara os resultados de um de outro com um resultado ideal criado na mão. O algoritmo proposto era 10% mais próximo do resultado ideal que o antigo.
  2. Tal qual aquele fatídico episódio do Pokémon da década de 1990.
  3. É difícil cravar a essa altura se o algoritmo do YouTube é melhor que o do TikTok. Provavelmente teremos que esperar estudos aprofundados daqui a alguns anos para ter uma noção mais exata das particularidades de cada um. O que parece claro é que, cada um à sua maneira, ambos levam usuários à radicalização — são fartamente documentadas as maneiras como o YouTube coloca seus usuários em “rabbit holes” que terminam em conteúdo neonazista, golpista ou que incentiva suicídio.
  4. Ela se chama Kimberly Noel Kardashian, mas eu quis dar um mistério.
  5. Há outro ponto na discussão aqui: caso eles se tornem irremediavelmente incomodados, vão para onde? Se um youtuber está muito insatisfeito com o YouTube, qual outra plataforma de vídeo lhe oferece uma audiência enorme e tantas formas de monetização? Esse debate nos leva, como tantos outros no Tecnocracia, ao certame dos monopólios digitais e da regulamentação.
  6. Aqui nós adoramos o deus coentro.
  7. Já que a ByteDance também é Big Tech.

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Tecnologia cria hábitos e hábitos criam memórias. Um dos hábitos alimentados por tecnologia que a juventude brasileira de classe média na década de 1990 tinha era, na sexta à noite, ir até uma videolocadora. Na época, a mídia ainda era física e, consequentemente, limitada — hoje, a mídia é um apanhado de dados gravado num disco rígido (na sua máquina ou num servidor na nuvem), o que a torna ilimitada pela reprodutibilidade. Quando o videocassete se tornou barato no fim da década de 1970, explodiu o fenômeno do homevideo e os apocalípticos de ocasião juraram que o reprodutor doméstico mataria os cinemas. Na real, os cinemas ficaram bem e os estúdios encontraram uma nova forma de recuperar o investimento na produção dos filmes. Mas como comprar mídia física original era caro, surgiu um modelo do aluguel. As locadoras de vídeo dominaram a maneira como consumíamos multimídia — não apenas filmes, mas games também — na década de 1990.

Se você ainda não tem ressacas que duram dias, meus parabéns, isso é tão teoria para você como o meteoro que dizimou os dinossauros. Se você lembra, parabéns também: o dinossauro é você. Como qualquer mercado minimamente organizado, o de locadoras também tinha faixas (para aproveitar essa onda recente da internet de colocar em prateleiras toda e qualquer coisa da humanidade). Existiam as locadoras de bairros, quase sempre melhores, e as multinacionais, representadas pela Blockbuster. Quase todas faziam pacotes especiais nas sextas à noite para que a horda de jovens e velhos da década de 90 assistissem a vários filmes no fim de semana e só devolvessem tudo na segunda. Moscou na noite de sexta? Chegou na locadora e não tem mais nada de interessante? Talvez na Blockbuster tenha sobrado uma cópia de comédia do (diretoria) Jim Carrey ou aquele filme que já não estava bombando.

A explicação toda não é saudosismo. A vida com mídia em bits, não em átomos, é inegavelmente melhor — com a exceção do vinil, mas essa é discussão para outro dia. Acontece que nesse modelo de consumo multimídia havia uma figura fundamental que nos ajudava a navegar na grande (mas ainda não infinita) oferta de possibilidades: o cara da locadora. A figura era quase sempre alguém jovem que consumia filmes de forma compulsiva e tinha sempre na manga uma sugestão de filme, artista ou movimento sobre o qual você nunca tinha ouvido falar. Alguns eram pedantes? Claro, é muito difícil encontrar um fã (ou hater) do Godard que não seja só um pouquinho pedante. Às vezes as sugestões não eram exatamente uma maravilha, mas eu não lembro de acatar uma sugestão de um funcionário de locadora e não ter, pelo menos, ficado positivamente surpreso.

Interior de uma antiga locadora de vídeo com chão acarpetado.
Foto: Jon Konrath/Creative Commons.

Trabalhar em locadora — e consumir tanto conteúdo sobre filmes — foi uma escola de cinema para alguns grandes diretores, a começar por Quentin Tarantino, Kevin Smith e Steven Soderbergh. O exemplo mais interessante do fenômeno é Tarantino escrevendo o roteiro de Cães de aluguel enquanto trabalhava em uma locadora em Manhattan Beach, na Califórnia.

Um dos amigos com quem o Tarantino planejava filmar o roteiro deu uma cópia para seu professor de atuação. A esposa do tal professor repassou o roteiro ao Harvey Keitel, que gostou tanto que não apenas se escalou para o papel de Mr. White como ajudou a levantar capital. Esse papel da videolocadora como uma espécie de escola de cinema na década de 1990 está muito bem documentado no livro I lost it at the video store: A filmmakers’ oral history of a vanished era (sem tradução para o português), do jornalista Tom Roston. Abre aspas para a reportagem da New Yorker sobre o livro:

As locadoras foram plataforma de lançamento de verdadeiros outsiders e seus exemplos forneceram inspiração para que os cineastas Joe Swanberg e Alex Ross Perry as vissem como playgrounds cinemáticos. Quando esses cineastas jovens foram para as escolas de cinema, locadoras eram um tipo de contra-programação, uma afirmação de valores e das diferentes personalidades daqueles descobertos em seus estudos. Eles exaltavam valores anti-acadêmicos de desordem, espontaneidade e entusiasmo.

As recomendações surfavam nessa exaltação do próprio interesse, da própria personalidade cinematográfica montada pelo consumo compulsivo de conteúdos semelhantes a interesses próprios — Tarantino sempre foi apaixonado por horror e “gore”, algo que fica evidente na sua filmografia. Encontrar um(a) atendente de locadora que compartilhasse contigo alguns desses interesses seria o Eldorado: ter à disposição não apenas o conhecimento enciclopédico, mas também um construído a partir de interesses compartilhados. Era a certeza de voltar para casa no fim de semana com novos filmes que certamente você gostaria. Era também um processo aleatório, em que a sorte e a aleatoriedade exerciam um relevante papel. E se aquela atendente que também curtia filmes de samurai dos anos 1960 trabalhasse na locadora do outro lado da cidade, enquanto a do seu bairro tinha uma fixação pela Nouvelle Vague?

Como resolver isso em escala? Como garantir que as melhores recomendações chegariam aos ouvidos de quem melhor as aproveitaram? No mundo físico das videolocadoras, a pergunta era apenas retórica, mas a codificação de produtos e serviços em bancos de dados a tornou um guia, algo que molda um objetivo. Recomendação online é uma das áreas mais antigas da análise de dados. Muito antes da expressão “ciência de dados” se popularizar na sua timeline do LinkedIn mais rápido que dois coelhinhos no cio sem nada para fazer, já existiam centenas de especialistas que trabalhavam grandes bancos de dados para entender a melhor forma de indicar algo desconhecido de que você pudesse gostar — principalmente se isso significasse uma venda a mais. Na última década, a popularização de ferramentas de armazenamento e análise e a sofisticação de bibliotecas de aprendizagem de máquina se traduziram em sistemas de recomendação replicados não apenas em filmes ou produtos no e-commerce.

No nono episódio da quarta temporada do Tecnocracia, a gente vai falar das consequências dessa explosão nos sistema de recomendação e como o TikTok, com uma competência que pouquíssimas empresas do setor têm em algoritmos de recomendação, está forçando o mercado a mudar um paradigma antigo. É o nosso episódio anual sobre o TikTok, o aplicativo que todo usuário com mais de 30 anos encara da mesma forma que um filme Transformers do Michael Bay: a gente olha para a tela, sabe que tem alguma coisa acontecendo, mas é tudo tão rápido que ninguém tem a menor ideia de que porra é aquilo. Ao fazer muito mais com o mesmo, o TikTok agarrou o mercado pelos chifres e agora está todo mundo sendo forçado a reagir, ainda que isso signifique comprar briga com a razão do seu sucesso: sua base.

Toda quinzena (às vezes mais), o Tecnocracia junta cinema, influenciadores, teoria literária e fofocas do Instagram para mostrar como ainda tem muita coisa a construir nessa coisa chamada internet. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de crowdfunding do Manual do Usuário. A partir de R$ 16 por mês, você ganha um assento no grupo do Telegram e participa do episódio mensal ao vivo do podcast, o Balcão. E ainda ganha adesivos.

Existe uma história em ciência de dados que já foi contada tantas vezes que, tal qual a sabedoria popular, virou quase folclore. É a seguinte: na década de 1990, a analista responsável por um varejista nos Estados Unidos estava analisando dados de compras de produtos para bebês. Quem já teve filho sabe: do lado do consumidor, é tudo caro demais, o que significa que no lado do fornecedor a margem é excelente. A ideia original era entender quais produtos de bebê poderiam ser vendidos juntos para tentar “colar” nos campeões de vendas outros produtos que não saiam tanto — ou, como diria a Luciana Gimenez, fazer um “cross selling”.

Algumas queries de SQL e horas de análise mais tarde, a tal analista descobriu que o produto com maior correlação com fraldas não era Nan ou chupetas, mas cerveja. Cerveja não é exatamente o que você pensa quando cogita itens parecidos com fraldas, mas os dados batiam. Em uma palestra sobre Strat e Hadoop em 2015 (ou seja, quando a explosão recente de ciência de dados estava começando), o analista de dados Mark Madsen afirmou que traçou a história até sua origem: a analista seria Karen Heath, então empregada pela Teradata para analisar dados de um varejista norte-americano em 1992. Madsen é atualmente um fellow da mesma Teradata, empresa fundada em 1979 para analisar dados. Pode ter sido Heath, pode não ter sido.

O ponto é que a história quase apócrifa ilustra que sistemas de recomendação no varejo não são novos. Tanto que, quando varejistas online começaram a se organizar, o enorme volume de dados encontrou na recomendação uma das suas primeiras aplicações. Algumas das primeiras abordagens positivas sobre a Amazon, fora o receber sem sair de casa, era a capacidade de indicar produtos que o consumidor também se interessaria sem, no entanto, ter que procurá-los ativamente.

O algoritmo era tão bom (continua até hoje) porque usar uma abordagem de filtragem colaborativa item por item, que produz resultados melhores que outras abordagens tradicionais, como clusterização e métodos baseados em busca, e também escalava em bancos de dados gigantescos. Os três responsáveis pelo algoritmo escreveram um artigo acadêmico, publicado na edição de janeiro e fevereiro de 2003 da revista técnica IEEE Internet Computing, explicando em linhas gerais a abordagem prática.

Quase 20 anos depois, o artigo é uma das pedras fundamentais de recomendação online — lá se vão 7,8 mil citações acadêmicas e centenas de patentes. A própria Amazon não se constrange em detalhar como o algoritmo evoluiu nas duas últimas décadas para se tornar mais poderoso com machine learning e estar disponível dentro da AWS. Outro exemplo de como a Amazon é excelente em transformar custos fixos em centros de receita, mas isso é papo para outra hora.

Algoritmos de recomendação não eram usados apenas para o varejo digital. Se dá para recomendar produtos físicos, por que não multimídia? Outro exemplo clássico de recomendação online é a Netflix. Lá por meados dos anos 2000, quando a Netflix começava a ganhar tração no mercado, o sistema já era muito bom para indicar filmes e séries semelhantes ao seu histórico, mas ainda havia margem para melhorar. Em 2006, a empresa anunciou que pagaria US$ 1 milhão a quem conseguisse aperfeiçoar o algoritmo. Três anos depois, um grupo composto por pesquisadores do AT&T Labs levou a grana para casa com um ajuste que melhoraria as recomendações em 10%, algo bem relevante para sistemas de aprendizado de máquina (machine learning)1. É aí que a dúvida do começo parece resolvida. As indicações dos atendentes de locadora estão digitalizadas e melhorando. Parecia inevitável que, em algum momento, a experiência se tornaria melhor. E se tornou. Mas não pelas mãos de Netflix e Amazon.

Entra em cena o TikTok e o porquê de estarmos falando de sistemas de recomendação há vários minutos. Você, personagem do Balzac, pode virar os olhos, mas o TikTok é hoje uma das históricas mais interessantes de tecnologia por dois motivos: um técnico, outro geopolítico. O geopolítico nós já aprofundamos no Tecnocracia #51. Hoje a gente vai falar do lado técnico.

Antes, um passo para trás para entender como funciona machine learning. Basicamente, um algoritmo do tipo é capaz de analisar um volume enorme de dados e encontrar padrões que você, na sua atenção e capacidade de processamento humanas, não conseguiria. Esses algoritmos são alimentados com dados que exploram “features” do campo que você pretende analisar. Criar features é uma arte por si só em ciência de dados. “Guilherme, que porra é features?” Features é todo e qualquer dado que ajude a classificar o dado (ou seja, um dado sobre dado, um metadado). Para fazer análises esportivas, você pode levar em consideração, por exemplo, a quantidade de passes que um atleta dá por jogo, a distância que ele percorre, os cartões que recebe, os gols que marca, as reclamações que faz com o juiz, se gesticula ou não com a torcida, se recebe ou faz faltas, se tirou a camisa ao fazer gol… A lista pode ser enorme. De novo: pensar em features é uma arte. Todos esses dados ajudam a descrever aquela informação.

Ninguém é tão bom para criar recomendações precisas usando pouca informação quanto o TikTok. Fora o blablablá oficial da ByteDance, veículos já tentaram investigar o funcionamento do algoritmo do TikTok.

Em 2021, repórteres do jornal Wall Street Journal criaram mais de cem contas no TikTok para tentar entender o algoritmo. No começo, o aplicativo vai apresentando vídeos com muitas visualizações. Conforme o usuário assiste a esses vídeos e interage com eles ou os ignora, o aplicativo vai afinando os gostos e enchendo a timeline com mais conteúdo do seu gosto. Nos testes do WSJ, o algoritmo foi capaz de criar um perfil assombrosamente preciso dos interesses em 40 minutos, incluindo propensão à depressão. Com o perfil lapidado constantemente, o TikTok vai conduzindo o usuário aos “rabbit holes”, referência a Alice no país das maravilhas: aquelas câmaras de eco onde só toca o que te move (seja esse sentimento medo, conforto ou raiva). Isso inclui rabbit holes que incentivam suicídio, automutilação e bulimia.

Rede representando conexões de vídeos no TikTok, com algumas miniaturas de vídeos de danças.
Imagem: Wall Street Journal/Reprodução.

As descobertas do teste empírico do WSJ coincidem com documento obtido por outro jornal, o New York Times, no fim de 2021. Chamado de “TikTok Algo 101”, o documento interno da ByteDance explica que os dois grandes objetivos do aplicativo são retenção (se o usuário abre o aplicativo de novo) e tempo gasto (para você ficar o maior tempo possível lá dentro). “Este sistema significa que o tempo gasto é chave. O algoritmo tenta viciar as pessoas em vez de dá-las o que elas querem de verdade”, explica o pesquisador Guillaume Chaslot, que após trabalhar no algoritmo de recomendação do YouTube saiu do Google e fundou uma organização chamada Algo Transparency para defender maior transparência sobre os algoritmos que regem nossas vidas digitais. Meu xará Guillaume leu o documento obtido pelo New York Times.

Como isso funciona na prática?

Quando você entra no TikTok, antes de você, trintão ou trintona, convulsionar pela explosão de imagens, flashes e dancinhas2, o aplicativo não enche seu saco pedindo para adicionar amigos, familiares e afins. Ele já te mostra vídeos logo de cara e o algoritmo, baseado em como você reage a esses vídeos, começa a calibrar os assuntos que ele suspeita sejam do seu interesse. Quanto mais você assiste, mais vídeos daqueles assuntos na sua gigantesca biblioteca são selecionados e, com o seu feedback (direto ou indireto; até o tempo vendo o vídeo é levado em conta), entende melhor o que naquele vídeo de homens de sunga brincando com filhotes de husky à beira mar chamou sua atenção: os homens de sunga, os filhotes de animais, os huskies, a praia, a paleta de cores, o filtro usado, a música eletrônica nervosa, os cortes rápidos… Cria-se um círculo vicioso — você vê e reage, o algoritmo calibra, seleciona e envia novos vídos, você vê os novos vídeos e por aí vai. Não é necessário adicionar seus amigos para aproveitar o TikTok. “O formato de vídeos curtos agarra sua atenção em um nível mais primitivo, apoiando-se em novidades visuais ou uma esperta mistura entre música e ação ou expressão emocional direta, para gerar seu apelo”, como explica o professor da Universidade de Georgetown e autor do livro Trabalho focado, Cal Newport, na revista New Yorker.

Estruturalmente, o que o TikTok faz não é nada diferente, por exemplo, do que o YouTube faz há mais de uma década3. A diferença é que o sistema de recomendação criado pela ByteDance para o TikTok funciona absurdamente bem. Tão bem, mas tão bem que está quebrando um dos principais paradigmas da internet.

Desde a década de 1970, assimilamos a computação pessoal nas nossas vidas usando referências que já temos. A área de trabalho dos sistemas operacionais chama “desktop” por replicar o espaço de trabalho sobre a escrivaninha que a humanidade tem há séculos. As semelhanças eram tamanhas que, durante muito tempo, aplicativos do Mac e Windows replicavam desnecessariamente a textura de elementos presentes no desktop físico, como o couro que protegia as bordas da mesa ou as pastas amarelas (mais comuns nos Estados Unidos) para representar diretórios, algo chamado de esqueumorfismo no design.

Quando as redes sociais começaram a fazer sucesso, não foi diferente — a socialização digital só começou a decolar quando migramos para o online a rede de amigos, familiares e conhecidos que fomos arregimentando ao longo da vida no mundo real. Essa rede e todas suas conexões tem nome: grafo social. Pense em todas as pessoas que você já conheceu o suficiente para se lembrar de nomes, rostos e/ou características pessoais. Tente imaginá-la como uma teia em que os pontos são pessoas que se conectam por linhas quando há algum laço, com você no centro, ligada a todas elas. Esse é o seu grafo social.

Foi baseado no grafo social que você entendeu o Orkut e o Facebook. No sentido contrário, você só passou a falar a expressão “grafo social”, nascida nos anos 1960, por causa do Facebook e do Orkut. Recuperando as amizades dos tempos do colégio ou aqueles seus tios velhos do interior. O grafo social é importante já que comunidades digitais são como bares: você pode até preferir um mais afastado que tem um drink melhor ou uma coxinha mais gostosa, mas se todos seus amigos estão naquele bar meia boca é provavelmente para lá que você vai. A partir do momento em que o Facebook atraiu um número suficiente de pessoas para replicar digitalmente essa rede de contatos formada na vida real, a guerra das redes sociais generalistas terminou. Uma das leis básicas da internet é a de Metcalfe: o valor de uma rede é proporcional ao quadrado dos usuários conectados nessa rede. É por isso que migrar do Facebook é difícil — lançar um concorrente é moleza, mas como carregar aquela multidão com você? A curva de aprendizado trabalha contra. É mais ou menos a razão pela qual é tão difícil convencer seus pais a trocar o WhatsApp pelo Signal. É baseado nessa rede de contatos e no conteúdo que ela produz voluntariamente que a rede social seleciona o que te mostrar. Com o grafo social de quase metade da humanidade, o Facebook parecia imbatível.

É aí que entra o TikTok. O sistema de recomendação criado pelo TikTok é tão bom, mas tão bom que, sem te conhecer há anos, te serve conteúdos mais afinados ao seu gosto do que aqueles filtrados pelos seus amigos e parentes. Esse grau de automação também resolve outros problemas do modelo antigo: o conteúdo que vem do seu grafo social é finito — seus X amigos produzem um número Y de posts. Uma hora, esse volume se esgota.

Não demorou muito para que as plataformas vissem as vantagens e passassem a integrar a recomendação por machine learning e a pelo grafo social. Os resultados do TikTok falam por si só. De novo Newport na New Yorker:

Estima-se que o TikTok tenha um bilhão de usuários ativos mensais, um número atingido em um espaço de tempo muito curto, e de acordo com algumas notícias o app tem tempo médio de uso de 10,85 minutos por sessão. Se verdade, isso seria muito mais alto que qualquer outro app de rede social.

Confrontados com o inegável sucesso, Twitter, Facebook e Instagram estão há um bom tempo tentando replicar o modelo. O problema é que as três redes foram construídas a partir do grafo social. No final de julho, o balanço entre o que vem do grafo e o que vem do algoritmo pendeu demais para um lado e deixou uns perfis bem grandes incomodados.

Print do story que Kylie Jenner postou pedindo para o Instagram voltar a ser o que era.Entra no certame Kimberly Noel, uma influenciadora bastante popular que você conhece pelo nome Kim Kardashian4. No stories, Kim e sua irmã Kylie Jenner compartilharam um post que pedia que o Instagram voltasse a ser Instagram. Traduzindo: parasse de meter tanto reels e conteúdos sugeridos no seu feed e voltasse a mostrar posts dos amigos de forma cronológica.

A gente já falou isso no Tecnocracia #40: Kim Kardashian (e suas irmãs moldadas à sua imagem e semelhança) é o rosto do Instagram. Daqui a décadas, quando arqueólogo da mídia detalharem esse período esquisito em que vivemos, lá estará o rosto e as curvas de Kim como o parâmetro a partir do qual milhões de pessoas no mundo se inspiram para se exibir no Instagram. Foi Kim a pioneira do chamado “Instagram look”: as poses, o duck-face, as roupas, os penteados… Kim Kardashian está para os anos 2010 como a Pete Wentz está para os anos 2000 e a Pakalolo está para os anos 1990. Quando a “poster child” (beijos, Lu) do teu serviço reclama publicamente é que algo não vai bem de verdade. Kim e Kylie expressaram uma frustração que milhões de usuários do Instagram sentem há um tempo: o Facebook tem colocado tanto penduricalho que o aplicativo virou uma feira livre. Há um tempo que o Facebook elegeu o Instagram o seu matador de rivais: sempre que detecta uma possível ameaça ao seu reinado, a turma de Zuckerberg replica o modelo de sucesso dentro do Instagram. Alguns deram muito certo — vide os stories copiados do Snapchat. Mas a transmutação do Instagram em algo cada vez mais parecido ao TikTok, com um excesso de vídeos e indicações algorítmicas, não desceu tão bem, a ponto de incomodar a rainha do aplicativo.

Parece claro que o Instagram está preso entre duas coisas: de um lado, você tem o futuro do serviço. É inevitável: como o TikTok já mostrou, o futuro dessas redes sociais passa por vídeo e por um aumento nas recomendações por algoritmos. Vídeos dão mais pontos de dados que fotos e textos e, por isso, há uma quantidade muito maior de informação a se analisar para recomendar mais conteúdo (e a roda recomeça).

A outra amarra que prende o Instagram é sua própria base. Existe uma relação simbiótica entre criadores de conteúdo e as plataformas. Aqueles só conseguem dinheiro e projeção por estas, estas só conseguem se manter atraentes e lucrativas pela ação daqueles. Existe um equilíbrio delicado em assuntos como a moderação das próprias regras sem alienar e/ou deixar os criadores incomodados a ponto de partirem5. Nessa relação delicada, quem tem uma grande vantagem é a plataforma. A gente já vive há anos suficientes dentro da chamada economia criativa para saber que são pouquíssimos aqueles que sustentam um nível de fama e relevância por tanto tempo. A regra é a renovação. Eu aposto uma galinhada com coentro e apimentada6 que você consegue citar de bate-pronto três ou quatro criadores que você admirava e que perderam relevância, sumiram nos últimos anos — porque o algoritmo mudou, porque a pessoa se cansou, porque o tema saiu de moda… As razões são muitas. Para cada Kardashian e Whindersson que se mantiveram, há centenas de Te Dou Um Dado, Thomas Sanders, o Charges.com.br… A lista é enorme.

É mais isso que motivou a reclamação pública das Kardashian. Pessoalmente, eu não acho que Kim e suas irmãs estejam preocupadas com o Instagram ser um aplicativo para ver fotos de amigos. Dá um pulo na conta dela no Instagram: em setembro de 2022, ela segue 206 pessoas e é seguida por 330 milhões. Se o Instagram fosse só para amigos, Kim não seria a rainha do aplicativo. A reclamação não é saudosismo de ver os filhos, os almoços ou os lattes dos seus amigos, é 100% auto-proteção, defensividade baseada numa dose de hipocrisia. Sentada no trono, Kim reclama contra a plataforma que a alçou à posição pelo medo das mudanças ajudarem na ascensão de outros influenciadores que não ela. A médio prazo, esse modelo de encher o feed de recomendações automatizadas tira espaço das contas que você já está seguindo. É, logo, um risco para o grupo liderado pelas Kardashian. O medo é que todos se juntem aos nomes citados há pouco na reciclagem dos criadores. Vai demorar, lógico, mas pode acontecer.

Frente à gritaria, o responsável pelo Instagram dentro da Meta, Adam Mosseri, gravou um vídeo fazendo uma mea-culpa. Ele admite que a plataforma está testando novas abordagens para recomendação e que entende o incômodo dos usuários acostumados com o modelo tradicional. O que chamou a atenção, porém, foi o que Mosseri não falou.

Pintura com uma espécie de rei no centro, olhando para uma inscrição iluminada na parede atrás, enquanto rodeado de outras pessoas.
Festa de Belshazzar.. Pintura de Rembrandt.

O novo menu para conteúdos dos amigos é a versão digital da Festa de Belsazar, capítulo 5 no Livro de Daniel do Antigo Testamento: a escrita do futuro está claramente na parede. O Instagram não vai parar e o próprio Mosseri fala isso no vídeo. A Meta também não. Ninguém vai. Abre aspas para Jeff Horwitz, repórter do jornal Wall Street Journal:

A Meta quer te entregar mais conteúdos de amigos. Mas pesquisas mostraram que: 1) seus amigos não estão postando o suficiente para encher o inventário; e 2) seus amigos são menos interessantes que TikToks ou memes. Ou seja: ou você assiste a vídeos curtos ou faz amigos mais interessantes.

Não é só isso. As razões para a mudança não são apenas para facilitar a vida da Big Tech. Há também uma questão comportamental inegável: a maneira como interagimos e criamos laços online mudou muito desde 2011, 2012, quando o Instagram começou a explodir em popularidade. “É tentador pensar que se o Instagram simplesmente revertesse para uma interface anterior ou recuperasse o feed cronológico nós nos reaproximaríamos das pessoas que gostamos. Mas nós não criamos ou aumentamos conexões pessoais mais pela publicação ou comentários em fotos bastante pessoais e públicas organizadas em uma grade. Hoje, intimidade digital é trabalhada por funções como DMs, chats em grupo ou posts efêmeros para os Melhores Amigos”, escreve a jornalista Taylor Lorenz, do Washington Post. Ela está certa: fora a postura defensiva das Kardashian, a discussão está mergulhada em um saudosismo que não cabe mais. Redes sociais mudam também porque a forma de interagir da da sociedade em comunidades digitais muda.

O modelo de redes sociais no sentido mais literal (formado por conteúdos criados a partir de interações sociais) parece fadado a desaparecer por um modelo de redes de recomendação (formado a partir de interesses semelhantes). Tanto que o próprio TikTok não se apresenta como uma rede social, mas como um aplicativo de entretenimento. É outro formato que a Big Tech “old school” vai dominar? 7 Em outras palavras: há espaço para otimismo? Cedo para dizer ainda, mas as dificuldades em replicar o TikTok sugerem que a batalha não vai ser moleza como copiar o Snapchat. Newport é flagrantemente otimista: “No final, o maior legado do TikTok talvez seja menos sobre o seu sucesso mundial de agora, algo que deverá passar, e mais sobre como, ao forçar redes sociais gigantescas como Facebook a perseguir um novo modelo, ele acabou liberando a internet social.” É inegavelmente um novo movimento, daqueles que não vimos na última década.

A Meta não tem bala de prata contra o TikTok: já tentou copiar e não colou, vem mudando a estruturas de recomendação com resultados no máximo medianos e enfrentou a fúria da própria base, e nem cogita comprar o TikTok já que 1) o TikTok é a jóia da internet chinesa; 2) o governo dos EUA e a opinião pública estão com a companhia no microscópio; e 3) o TikTok está grande demais para ser digerido. Resta tentar navegar nas antigas águas, algo que a Meta tem demonstrado fazer com notória incompetência. A migração para o modelo de recomendação algorítmica seria um desafio menor se a empresa de Mark Zuckerberg conseguisse criar um produto que não fosse horroroso ao usuário final. Qualquer um que tenha usado o Instagram recentemente viu como ele virou um Frankenstein: foto, vídeo, compra, Reels, uma cacofonia horrível… Tudo é ruim, mas talvez nada seja pior que a aba Explorar e suas sugestões sem qualquer precisão, inclusive de contas que você já bloqueou.

Para voltar à nossa metáfora inicial, o movimento recente de recomendações algorítmicas é como se os atendentes das locadoras fossem digitalizados para não precisar encontrar aquele que tem o gosto parecido ao seu. Na teoria, qualquer um te daria indicações 100% lapidadas para seu gosto. Mas a execução até agora pela Big Tech norte-americana em sua tentativa de reagir ao TikTok é você entrar na locadora e, cercado por milhares de excelentes filmes dos mais variados gêneros, o tal atendente só é capaz de te trazer cópias gastas de Cinderela baiana e vez ou outra um manual de terrorismo neonazista e dizer que é isso o que você quer ver.

Foto do topo: Solen Feyissa/Unsplash.

  1. Em ML, o treino de modelos parte de um modelo já pronto e compara os resultados de um de outro com um resultado ideal criado na mão. O algoritmo proposto era 10% mais próximo do resultado ideal que o antigo.
  2. Tal qual aquele fatídico episódio do Pokémon da década de 1990.
  3. É difícil cravar a essa altura se o algoritmo do YouTube é melhor que o do TikTok. Provavelmente teremos que esperar estudos aprofundados daqui a alguns anos para ter uma noção mais exata das particularidades de cada um. O que parece claro é que, cada um à sua maneira, ambos levam usuários à radicalização — são fartamente documentadas as maneiras como o YouTube coloca seus usuários em “rabbit holes” que terminam em conteúdo neonazista, golpista ou que incentiva suicídio.
  4. Ela se chama Kimberly Noel Kardashian, mas eu quis dar um mistério.
  5. Há outro ponto na discussão aqui: caso eles se tornem irremediavelmente incomodados, vão para onde? Se um youtuber está muito insatisfeito com o YouTube, qual outra plataforma de vídeo lhe oferece uma audiência enorme e tantas formas de monetização? Esse debate nos leva, como tantos outros no Tecnocracia, ao certame dos monopólios digitais e da regulamentação.
  6. Aqui nós adoramos o deus coentro.
  7. Já que a ByteDance também é Big Tech.

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